quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Náusea doce

"O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. (...) Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca. "

( Clarice Lispector - Laços de Família )

Também me chamo Ana, Clarice. Mas comigo não foi um cego mascando goma. Foi um velhinho arrumando a barraca de frutas de manhã, iniciando seu dia de trabalho. E eu ali parada do outro lado da rua, esperando o sinal abrir, senti todo o absurdo da rotina, que antes me fazia tão bem. A vida ficou pesada. Heidegger, Kierkegaard, Sartre, Simone, Nietzche, vieram todos de uma vez. Não mais com palavras. Senti o peso da existência e tive medo. Nariz encostado no limite da Matrix, percebi o engodo e me perdi. Qual uma Alice de 44 anos, vi passar meu coelho branco de colete e relógio e tentei segui-lo, mas não encontrei um país de maravilhas. Tudo ficou cinza, a vida se arrastava. Perdi o ritmo, descompassei .

A volta tem sido muito mais suave. Terapia, florais e muita, muita meditação. A simplicidade (?)do budismo que me apresentou a fórmula para me mover dentro desse software chamado Samsara e voilá, um mundo paradoxalmente mais leve. Parece mágica, mas não é. Dói, pesa, incomoda, mas liberta. Tô voltando, um ano depois. Mais devagar com a vida, mais suave, com um olhar mais doce pras pessoas , mais perto do que posso chamar de compaixão, numa perspectiva de que estamos todos no mesmo barco. Nada mais é tão sério, nada mais tão pesado. Precisei sentir todo o peso, para então, descobrir toda a leveza da vida, toda a transitoriedade do que chamamos realidade, nessa nossa busca inútil por solidez.

Não preciso mais ter razão, nem entender tudo. Apenas ser.

Nesse caminho de volta, às vezes ela ainda vem de mansinho, como uma sombra leve que vem do nada. Náusea doce - a melhor definição que encontrei para essa coisa . Estava aqui em casa e lembrei do livro . A mão foi certeira na estante, direto nas folhas, direto no conto lido há tantos anos atrás. Ali estava. No meu conto preferido, do meu livro preferido, dos escritos por você Clarice.
Alguns chamam de depressão, transtorno do pânico, tristeza, melancolia, frescura, falta de um "tanque de roupa pra lavar" rs rs
Eu gosto mais de náusea doce.

4 comentários:

Andrea disse...

Que belo texto Aninha, belo texto.

Juliana disse...

Aninha eu tenho esse livro e quero ler esse conto, qual o nome?
Olha só, pense que essas coisas só acontecem com gente sensível. Casca grossa não passa por isso, mas tbem não vê nada de novo. que bom que não soos robôs !

Ana Maria disse...

Obrigada Andrea !

Ana Maria disse...

Juliana o nome do conto é " Amor" . No meu exemplar antigo (ganhei quando tinha 15 anos ... ) fica na página 17 . O livro, "Laços de Família "

Beijos