sábado, 13 de dezembro de 2008

Irmão





Quando eu nasci ele tinha 5 anos e meio e lembra de quando eu cheguei da maternidade. Contam que ele ficou feliz e gostou do meu pé ! A partir daí, passou a ser um dos meus cuidadores.

Meu irmão, Marcos.

Cuidar. Essa é sua vocação, até hoje. Cuidava de mim para que a minha mãe pudesse costurar. Parava de brincar com seus carrinhos quando eu chorava no berço e para não ser muito interrompido, inventou um método eficaz, que digamos, me marcou profundamente: Simplesmente descobriu que mergulhando minha chupeta no açúcar, as interrupções eram menos freqüentes e ele podia brincar mais. Solução bastante criativa... tanto que até hoje, sou a formiga da casa!

Meu irmão é uma das pessoas mais criativas que eu conheço e sempre me surpreende com suas tiradas, trocadilhos e percepções inusitadas. Um senso estético apurado, memória perfeita. Consegue contar toda a história da família real, quem casou com quem, quem era filho de quem. Enquanto eu ainda confundo D.Pedro com D.João. Aliás, ele sabe o nome completo de D. Pedro. Sempre morri de inveja desse dom. Conhece todas as bandeiras e capitais dos países. Mas hoje vejo como isso passou despercebido. Como em toda família, cada membro recebe um rótulo, ou mais de um. Meu irmão era o indeciso, o bonzinho, o sem iniciativa. Eu era a estrelinha, inteligente e auto-suficiente. Cresci ouvindo que eu ia ser uma mulher independente, que não ia ser dona de casa e ficar cuidando de filhos, mas que ia ter um emprego bom e meu próprio dinheiro. E me diziam sempre: nunca dependa de ninguém. Nunca ouvi ninguém me dizer que eu era bonita, pelo contrário, eu era a magrela, mas como era inteligente, tava compensado.

Essas coisas deviam ser proibidas, pois funcionam como profecias malditas. É preciso muito cuidado com as coisas que se diz a uma criança.

Hoje tento a todo custo me livrar destes rótulos e provar pra mim mesma que sou mais que isso, que também sou bonita, que posso ser sexy e que sim, preciso de ajuda às vezes. Preciso de colo, de afagos e gostaria de envelhecer ao lado de alguém legal, crescendo e trocando experiências e afetos, numa relação não de dependência, mas de companheirismo. Na escola eu era a menina inteligente, nunca a mais paquerada. Até hoje não sei paquerar. É como se fosse algo que não fizesse parte da minha vida. Até hoje tenho vergonha de admitir que preciso de ajuda, que tenho incertezas e que estou muito longe de ser uma estrelinha. Mas é assim que a minha família me vê até hoje. A inteligente, que tem respostas para tudo. Centrada, equilibrada e auto suficiente.

Puta merda, obedeci direitinho. Logo eu, a desobediente por excelência da família! Caí na cilada e não me dei conta disso, pois sempre fiz questão de ser do contra, sempre rompendo com as expectativas, quando na verdade, estava era justamente caminhando em direção à profecia ...... que falácia! De ovelha negra não tenho nada, fui é bem obediente o tempo todo.

Quanto ao meu irmão, que cuidava de mim, continuou sua trajetória de bonzinho e se transformou num grande cuidador. Religioso, até hoje desde criança sai de casa aos domingos de manhã, para falar com as pessoas sobre a palavra de Deus. E faz isso verdadeiramente por amor, por cuidado às pessoas, pois realmente tem fé e se preocupa. Já foi xingado, já jogaram água, enfim, coisas que as pessoas sem educação preferem fazer, em vez de simplesmente agradecer e admitir que não estão interessadas em ouvir nada. Mas ele continua, pois sabe que as pessoas não se importam muito com os outros.

Quando minha mãe precisava sair conosco, ele é que levava a minha bolsa de bebê. Com certeza brincou bem menos depois que eu nasci. Quando me separei, foi a pessoa que mais me apoiou, sem dizer quase nada. Cuidou de mim e adotou meu cachorro, órfão da separação. Já me emprestou dinheiro, já me ouviu dizer desaforos, já me disse verdades em poucas palavras. Se eu pude sair pelo mundo algumas vezes, é porque sabia que ele estava lá, cuidando dos meus pais, da minha casa, do meu cachorro, das minhas plantas, da minha conta bancária.

De certa forma, a estrelinha brilhou porque tinha um staff, e esse staff era ele.
Lembro de algumas coisas cruéis, ditas na família, que imagino devam reverberar até hoje em sua memória e tenho vergonha disto, pois de certa forma participei.
Coisas do tipo: “Se fosse a Ana, conseguia resolver, mas o Marquinho é mais indeciso” “A Ana é mais esperta, ela consegue” e o meu irmão era o narigudo, era o que tinha o cabelo ruim, era o mais moreninho... pequenas crueldades.

Ninguém destacava a sua doçura, a sua efetiva preocupação com o outro, a sua disponibilidade para o outro, a sua bondade e a sua criatividade.
Eu era a primeira aluna da turma, ele não. Eu passei no vestibular e infelizmente na época, ainda fiz a cabeça dele pra fazer vestibular comigo. Eu passei e ele não. O que ouvimos foi: Ah, claro que a Ana ia passar... E mesmo assim ele vibrou comigo, quieto no seu canto.

Meu irmão seguiu a vida dele, sem grandes expectativas, pois a maioria delas estava voltada para mim. E sem perceber fomos realizando nossas profecias.
Mas um dia, meu irmão passou num concurso público bem concorrido e se tornou funcionário do BANESPA. Feliz por ter conquistado um emprego e um futuro seguro, dedicou-se com afinco ao banco, trabalhou mais de 20 anos sem faltar, mas nunca foi promovido, pois não tinha perfil... Fala três idiomas, que aprendeu quase sozinho, sempre conseguia uma solução criativa para as situações de trabalho, fazia os colegas rirem, pois tem um senso de humor refinado e muito próprio. Mas, não tinha perfil. E continuava cuidando de tudo o que podia.

Após 20 e tantos anos de trabalho, é demitido após o banco ser comprado pelo Santander e ser privatizado. Ao fazer o exame demissional, fica constado que tem LER e DORT em quase todo o corpo e por isso não pode ser demitido. Justamente quando minha mãe tem um diagnóstico de uma doença que viria a ser fatal.
Começa então uma via crucis, entre afastamentos e perícias, sempre humilhantes. O Banco, agora Santander, trata os antigos funcionários do BANESPA com o estigma que os funcionários públicos geralmente carregam: pouco preparados, poucos dispostos a trabalhar... E assim tem sido tratado, com total descaso pelo banco e também pela previdência, pois afastado é sinônimo de "vagabundo".
Após três anos nesse vai e vem, lutando para não perder o emprego, para não perder o plano de saúde que garantiu o tratamento da minha mãe, cuidando dela durante uma doença extremamente dolorosa, após ver seu salário infinitamente reduzido, perder dinheiro com pessoas desonestas, perder a mãe.... Resolveu tomar uma atitude saudável e abriu um quadro de depressão e transtorno do pânico.
Hoje, medicado, precisa de alguém que cuide dele e acho que chegou a minha vez de cuidar um pouco, retribuir um pouco tudo o que ele fez por mim até hoje.
Vê-lo deitado, dopado a maior parte do tempo, cheio de problemas de saúde, me dói muito, acho tudo injusto. Não tive filhos, mas se os tivesse , tomaria muito, mas muito cuidado com os rótulos que sem querer colocamos em cada um deles desde muito pequenos.
Mas tenho certeza que toda a sua bondade vai servir agora para ele mesmo, que é apenas uma pausa e que teve de ser à força, pois do contrário, continuaria obedecendo à profecia, continuaria sendo bonzinho com todos e se ferrando. Agora pelo menos, tem de SE cuidar. E agora a irmãzinha menor vai estar por perto, mais sossegada, com a mochila um pouco aposentada rs rs rs.
Não vejo sua depressão de hoje como uma doença ou como um fracasso, mas como mais uma de suas soluções criativas e confio que ele vai se sair muito bem de tudo isso. Esse é o meu irmão. Também de sangue.

2 comentários:

Anônimo disse...

Irmandade. Coisa bonita quando de fato acontece. Comigo náo rolou, meu irmão de sangue é quase um estranho.
Que coisa bonita vocês construíram.
Acho que vocês vão sair desta ainda mais irmãos.

Ana Maria disse...

Olá Victor 1
Vejo que esse sentimento é mesmo raro entre irmãos , muita gente me fala isso.
Talvez tenhamos tido sorte,ou compatibilidde astral :-)
Volte sempre !